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A cidade deve ser pensada sem divisão por funções ou renda, diz Jaime Lerner

Idealizador do sistema de transporte de Curitiba, ex-político está entre os urbanistas mais influentes do mundo

Katna Baran

Aos 82 anos, o arquiteto e urbanista Jaime Lerner é mais um dos tantos brasileiros reclusos em tempos de pandemia. Mas o lápis não descansa. O novo coronavírus fez efervescer ainda mais a mente que não para. Trabalha em novos conceitos para cidades, com quadras menores, mais aconchegantes, espaços centrais para encontro de vizinhos e serviços acessíveis de saúde.

Afastado da política, Lerner foi prefeito de Curitiba por três vezes nas décadas de 1970, 1980 e 1990 e governador do Paraná por dois mandatos consecutivos (1995-2002). Restrito – via assessoria – a falar somente da profissão, em entrevista por telefone à Folha ele deixa escapar entre as frases o que pensa da atual gestão sobre a crise. “O rodízio é uma espécie de cloroquina”, disse, cutucando ambas as políticas, em São Paulo e para o Brasil.

Lerner ganhou projeção a partir dos moldes para Curitiba, como o calçadão da Rua XV, os parques e o sistema de transporte por canaletas exclusivas para ônibus. Já desenvolveu planos para Rio de Janeiro, São Paulo, Havana, Caracas e Shangai e outras. Em 2017, foi escolhido pelos leitores da revista Planetizen como o segundo urbanista mais influente do mundo.

Para as cidades no pós-pandemia, ele quer abolir a divisão dos bairros por função ou renda. “Diversidade é qualidade de vida”, disse. Pensa em um novo papel para os carros, “o cigarro do futuro”. As casas, prevê, serão como tartarugas que integram “minha casa, minha vida, meu emprego”. Para reunir, quer o fim de condomínios horizontais, a “anticidade” para ele.

Há um estudo que aponta que parte dos moradores de Nova York querem retornar às pequenas cidades e que 5% já a deixaram. Há um risco para a existência dos grandes centros? O que pode ser feito para mudar essa realidade?

O futuro é pensar a cidade bem planejada, pensar a cidade como moradia, trabalho e lazer, tudo junto. O futuro não é a cidade grande ou a menor. Tenho uma parte da família morando em Nova York e eles gostam muito, apesar do risco. O risco é pensar mal a cidade.

O segredo será manter as coisas próximas, como o Sr. já defendia?

O que defendo são as coisas juntas: moradia, trabalho, lazer e mobilidade. Não é apostar no automóvel, na performance ou na tecnologia, o importante é a relação das pessoas com a cidade. É como uma tartaruga, ela é um exemplo de moradia e o desenho do casco é como de uma cidade. Tentar fazer ali uma relação de cidade com uma parte só para gente rica e outra só para gente pobre, morar aqui e trabalhar lá, não é a solução.

Falando dessa questão de mobilidade: as faixas para pedestres e ciclistas já estão se multiplicando ao redor do mundo. Isso é uma tendência que deve permanecer? Aqui no Brasil, as pessoas estão usando o carro como solução, até para drive-in, cinema.

O carro é o cigarro do futuro. Ninguém imaginava que a gente fosse abolir o cigarro, muito menos os carros. Eles precisam ser pensados a favor da cidade e não como uma solução.

Em São Paulo, o rodízio de carros não funcionou para controlar o isolamento social.

Não é isso que resolve. O rodízio é uma espécie de cloroquina. O que resolve é repensar o papel do automóvel na cidade. Superar o caos na cidade não é direcionar dia par ou dia ímpar, mas a maneira de usar o carro. O carro tem sido pensado de maneira errada. O erro está em não pensar a mobilidade.

Em relação ao transporte público: o modelo que o Sr. ajudou a fundar entra em cheque com a pandemia? A necessidade de distanciamento afeta?

Não. O que é importante é as pessoas aprendam a usar o transporte público da maneira correta. O importante é usar tudo da melhor maneira.

Especialistas falam que as cidades continuarão crescendo em altura por conta da vantagem econômica, mas criando espaços de “respiros”, como bosques verticais, o Sr. concorda?

Não é a altura, é a densidade e a maneira de viver essa densidade que interessam. É tudo integrando tudo. Área verde tem que ser parte da densidade e não respiro ou bosque vertical.

A pandemia escancarou problemas na questão ambiental. A natureza tem respondido positivamente à ausência do homem. Como fazer para não deixarmos tudo voltar como era?

A cidade como a gente imaginou vai voltar. A pandemia vai passar e a cidade pensada para o homem vai retornar. O que pode mudar nesse retorno é pensar bem a cidade. O saneamento básico, o acesso à água. Viver a cidade é importante. Temos que aproveitar o retorno para retornar bem. Aproveitar o pós-pandemia para recuperar as cidades.

Outros problemas foram evidenciados, como a falta de saneamento básico e acesso a água no país. Não temos uma saída construída para isso. A privatização é a saída mais viável?

Não é só a privatização. É pensar antes, é não canalizar muito as cidades. Por exemplo, aqui em Curitiba nós não adotamos grande obras de saneamento porque nós tratamos bem os rios. Cuidar dos recursos hídricos é fundamental. Não é a maneira [de fazer], se privatizar ou não, é o tratamento dos recursos hídricos. É pensar neles a favor e não contra a cidade.

A tipologia clássica das casas deve mudar. Os ambientes viraram uma coisa só: restaurante, cinema, escola, trabalho. Como a arquitetura pode atuar nesse redesenho das construções?
A casa deve ser mais acessível: minha casa, minha vida, meu emprego. Planejar as cidades por quadras. Desenhei uma quadra agora com oito clínicas. Cada quadra com clínicas que vão possibilitar atendimento e garantir trabalho para as pessoas. Já desenhei e pretendo verificar a viabilidade. Vamos começar a testar. As casas devem ser boas e baratas.

As relações pessoais também mudaram. As pessoas tiveram que olhar mais para o outro, para o vizinho, não só por uma questão de solidariedade, mas até para saber se o vizinho tem um problema, uma doença. Essa relação muda também as construções?

Uma boa convivência não é com condomínio horizontal, que afasta as pessoas da cidade. O condomínio horizontal é a anticidade. Você não pode separar as pessoas por renda ou função. Toda vez que isso acontece não é bom para a cidade. Não é eliminar a vizinhança, o que se fala muito, mas ajudar para que a vizinhança aconteça bem. Diversidade é qualidade de vida. Então é manter a diversidade, seja na função ou na renda.

O senhor foi governador e prefeito. Como tem visto a política do país?

​Em termos políticos o que deveria existir é a boa convivência entre aqueles que não concordam, isso está difícil nesse país. O que eu gostaria de ver é uma visão mais humana, mais próxima, não antagônica, espero que isso aconteça. Todas as cidades que têm apresentado crise nessa pandemia precisam ser repensadas com mais solidariedade.