Publicações científicas sugerindo compostos participando de benesses orgânicas os credenciam ao convívio na alta corte dos bons costumes e nos referenciamentos constantes dos profissionais relacionados aos temas. Na democracia da ciência as verdades são trocadas de lado: os óleos vegetais hidrogenados, que por décadas foram impostos como principal alternativa às gorduras animais saturadas, sobrevivem atualmente nos esconderijos de algumas indústrias alimentícias, dados os malefícios legados por seu consumo a numerosas gerações.
Os moldes atuais do comércio mundial de vinhos tiveram seu pedestal erigido quando o médico francês Serge Renaud, em 7 de novembro de 1991, no programa 60 Minutes, da rede de TV CBS, revelava o que é hoje universalmente conhecido como Paradoxo Francês. Sob seus argumentos e achados, o pesquisador demonstrava que o consumo regular de vinhos se relacionava a extraordinária diminuição dos riscos de doenças coronarianas dos franceses, a despeito do alto consumo de gorduras saturadas e de elevados índices de tabagismo. No ano seguinte Renaud assinaria artigo na conceituadíssima revista médica The Lancet com o título Wine, alcohol, platelets and the French paradox for coronary heart disease. E mundo vínico nunca mais seria o mesmo.
Duro golpe para os remanescentes orquestradores da Lei Seca na 18.ª Emenda da Constituição dos EUA e para os com famílias desagregadas pelo consumo abusivo do álcool, em suas apresentações. Mas a vida seguiu e nuances alvissareiras parecem estar contidas ao consumo moderado de vinhos e outros álcoois.
A ciência nunca encontrou qualidades nos derivados do ópio que promovam saúde, contudo seus viciantes derivados, como morfina e codeína, restam por vezes como último recurso no alívio de insuportáveis sofrimentos. A atmosfera catastrófica que envolve seu uso e o rigor na disponibilização desse fármaco parecia inibir o uso disseminado e sua consequente dependência. Um equívoco quanto à linha de segurança em sua utilização deflagrou um dos maiores dramas de saúde de todos os tempos nos EUA, no que se nomeia “crise dos opioides”, levando hoje a indenizações milionárias.
A acertada decisão da Anvisa de permitir a fabricação e comercialização de medicamentos com base no canabidiol, um dos componentes da Cannabis sativa (popularmente conhecida como maconha), trouxe à tona inúmeras indagações concernentes às observações dos parágrafos iniciais, especialmente por tocar “cláusulas pétreas” para grande nicho de nossa sociedade. Para muitos a decisão desse órgão desinibe pretensos consumidores e cria clima para a inclusão do seu uso na lista das boas condutas em todas as suas formas de utilização, abrindo enorme trampolim para o mergulho no vício de outras drogas, especialmente a cocaína.
Quando criança convivi com o sentimento de que a última definição que um indivíduo deveria agregar à sua existência seria a de maconheiro, tão perniciosa me soava a alcunha que até os dias de hoje, mesmo perante as oportunidades, nunca provei seu cigarro. O tempo entregou-me grandes amigos que consomem ou consumiram esse famigerado artigo e nenhum deles, geniais ou medianos como eu, expressa comprometimento físico ou cognitivo, ao menos não mais que a mim com meus vinhos.
A discussão da política de enfrentamento das drogas ilícitas em suas inúmeras alamedas e baias tem seu mais recente consenso legislativo datado de 2006 para uma lei que abriga como principal predicado a eliminação da restrição de liberdade do usuário flagrado portando, guardando ou consumindo o entorpecente em questão, mas por aqui restam alguns embaraços, entre eles a caracterização inequívoca do indivíduo como utilizador ou traficante.
O argumento dos que defendem a descriminalização da aquisição (aqui estaria sob o cajado do poder público) e do consumo dessas substâncias é a virtual transformação de problemas policiais em questões médicas, com consequente eliminação dos impérios relacionados à comercialização desses produtos e, então, uma substancial queda da criminalidade, ao menos da que tenciona busca de recursos para compra de drogas.
Os contra-argumentos são da mesma envergadura e se sustentam na falibilidade humana, nos inúmeros cenários causadores de frustrações do mundo moderno, nos quais indivíduos desconfortados por insucessos se sentiriam menos reprimidos na busca do consumo dessas substâncias.
Estamos longe de consonância nesse atribulado tema em suas observações jurídicas e socioeducativas, mas no que tange ao universo da saúde deve haver o respeito que foi entregue pela Anvisa aos médicos e pacientes, que à luz das necessidades contarão com fármacos à base de canabidiol que oferecem resultados de tamanha exuberância num grupo seleto de doenças, em sua maior parte neurológicas, que uma negativa da agência seria absolutamente injustificada.
Como foi desarrazoada a sumária decisão dessa autarquia quando retirou os fármacos emagrecedores em 2011, contrariando os argumentos de todas as entidades médicas envolvidas, incluindo o alto escalão da endocrinologia brasileira, o qual represento aqui com o nome do saudoso Alfredo Halpern. Os oportunistas de plantão não demoraram a oferecer imaginários tratamentos naturais e surgiriam magos prometendo combinações de alimentos confortantes e emagrecedoras.
Seremos sempre mutáveis perante as circunstâncias e isso nos obriga ao diálogo constante. Tudo pode ser alimento, remédio ou veneno, dizia Paracelso, dependendo apenas da dose. A discussão deve ser ampla e sob os holofotes da ciência. Quando pecamos nesses critérios por inclinações ideológicas ou crenças pessoais, podemos estar entregando a causa aos mais perigosos, que para Goethe são os que não têm nada a perder.
Antonio Carlos do Nascimento, professor e endocrinologista
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