A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) planeja flexibilizar a regra de importação, pelo Ministério da Saúde, de medicamentos sem registro, ou seja, aqueles cujos dados de qualidade e eficácia não passaram pelo crivo da agência. As informações são de Natália Cancian e Ranier Bragon na Folha de S. Paulo.
Na prática, a medida retiraria a necessidade de liberação da agência, e a decisão de importar esses medicamentos caberia apenas ao governo.
Representantes da indústria farmacêutica afirmam que a medida, que foi colocada em consulta pública no último dia 27, ameaça investimentos no Brasil e traz risco à saúde de pacientes da rede pública. O grupo pretende solicitar em reunião na próxima semana que a agência suspenda a consulta e reveja a proposta.
Já o governo tem alegado que a mudança agilizaria importações de produtos, medida necessária quando falhas no fornecimento geram risco à saúde pública.
No centro do embate está o modelo de controle e aval a remédios no país. Hoje, para que um medicamento possa ser comercializado no Brasil, é preciso registro na Anvisa, etapa que consiste na análise de dossiês de segurança, qualidade e eficácia.
A importação de medicamentos pelo governo sem esse documento ocorre apenas em casos excepcionais, como desabastecimento e situações de emergência em saúde pública, e mediante autorização prévia da agência.
A nova proposta retira trechos que frisam o caráter de excepcionalidade e também a necessidade de aval da Anvisa, que passaria a ser apenas comunicada do processo. A avaliação de que há um cenário de desabastecimento, critério para importar produtos sem registro, caberia ao Ministério da Saúde. O texto também repassa à pasta a responsabilidade por assegurar a qualidade dos produtos.
“Quando a Anvisa intervém no processo de importação, ela faz uma verificação quanto à certeza de segurança, qualidade e eficácia do medicamento. Ao colocar que o deferimento é automático, a preocupação das entidades é que isso se torne um processo em que a Anvisa abre mão do seu poder fiscalizatório e da garantia de qualidade e eficácia”, diz Roberto Altieri, diretor da área de regulação da Abifina (Associação Brasileira da Indústria de Química Fina). “É abrir mão de um controle necessário para a legalidade do processo.”
Em outra mudança, a proposta retira trecho da resolução anterior que citava que a necessidade de que os produtos fossem pré-qualificados pela Organização Mundial de Saúde. O texto passa a citar apenas que, diante da ausência dessa qualificação, é permitida a compra de produtos com registro em outros países ou aferidos por outras instituições
A medida também retira trecho que aponta a necessidade de que o governo apresente plano de gerenciamento de riscos, informando apenas de forma genérica a necessidade de haver mecanismos de monitoramento.
Para Altieri, a mudança pode trazer risco ao paciente. “Sempre que não há uma intervenção da Anvisa em processos como esse, há esse risco. Se vai ser materializado ou não, podemos discutir. Mas o risco sempre existirá. Nossa preocupação é evitar que a questão da desburocratização não implique em uma desregulamentação.”
Nelson Mussolini, presidente-executivo do Sindusfarma (sindicato da indústria), afirma que a proposta tende a desestimular as empresas. “Será que vale a pena registrar o produto no Brasil? Se não registro, não preciso seguir as regras sanitárias e trago o produto de fora. Vai começar a diminuir a ação das indústrias que estão no Brasil.”
“A proposta não deixa claro as questões da excepcionalidade, que fica meio subjetiva. Ah, é falta de produto. Mas como se avalia a falta de produto? Se eu estou acostumado a comprar, por exemplo, mil frascos, e de repente peço 10 mil, vira falta de produto”, afirma.
Nos bastidores, membros do setor ouvidos pela Folha afirmam que um dos objetivos da proposta é permitir ao governo importar imunoglobulina, usada no tratamento de diversas imunodeficiências, com fornecedor internacional sem produto registrado no Brasil.
Outro interesse é economizar recursos comprando medicamentos da China, que tem uma regulação considerada mais frouxa em relação aos Estados Unidos e Europa.
“É uma coisa que não tem precedente de quanto é ruim, perigoso para a população, em uma situação em que se vai balizar só pelo preço. Isso é muito preocupante mesmo. Há 20 anos que estou nessa área, de regulação da indústria farmacêutica, e eu nunca vi um texto tão perigoso para o país e para o brasileiro”, diz Henrique Uchió Tada, presidente-executivo da Alanac (Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Nacionais).
Em audiência pública na Câmara dos Deputados realizada na quarta-feira (5), o diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Dias, defendeu a medida. “Esse procedimento já existe, ele apenas se torna mais rápido para que o Ministério da Saúde possa garantir o suprimento na ponta para o cidadão que precisa do medicamento”, disse.
O diretor afirmou ainda que a mudança não visa apenas a aquisição da imunoglobulina. “Durante o ano de 2019 o ministério teve muita dificuldade de fazer as aquisições desse medicamento, mas isso é algo muito maior, que não fica restrito a um único insumo”, afirmou, acrescentando que embora não haja desabastecimento do produto atualmente, há “incapacidade dos representantes nacionais do insumo de suprirem a necessidade do Ministério da Saúde”.
A audiência foi coordenada pelo deputado federal Ricardo Barros (PP-PR), que já havia tentado alterar as regras de importação de remédios quando ocupava o cargo de ministro da Saúde, na gestão de Michel Temer. Na época, Barros entrou em confronto com a gestão anterior da Anvisa ao defender a aquisição de produtos de empresas sem a apresentação de uma declaração de que são detentoras de registro.
Em nota, a Anvisa afirma entender que a resolução “necessita ser atualizada nesse momento”, mas não deu justificativas para a urgência. Em geral, consultas públicas têm prazo que varia de 45 a 60 dias. Já a proposta atual teve o prazo de contribuições reduzido para 15 dias. Também foi dispensada a realização de uma AIR (análise de impacto regulatório), procedimento comum a casos como esse.
A consulta pública segue até 18 de fevereiro. Após essa etapa, o documento passa por possíveis ajustes e é levado para aval de diretores. O relator é o atual diretor-presidente da agência, Antonio Barra Torres, indicado pela gestão de Jair Bolsonaro.
A agência diz que o processo está em fase inicial, “sendo a consulta pública o instrumento que permite a contribuição da sociedade, setor produtivo e regulado à proposta de norma da agência.”
“A atribuição da Anvisa para avaliar e garantir a segurança do uso de medicamentos é feito pela concessão de registro sanitário, que é um processo que demanda tempo por conta da sua complexidade técnica. Por isso é necessário buscar respostas prontas quando for caracterizada a indisponibilidade tempestiva ou quantitativa de produto nacional ou mesmo o iminente desabastecimento, que possa gerar grave risco à saúde da população”, afirma.
O Ministério da Saúde diz que não irá se pronunciar sobre a proposta, “pois ainda encontra-se em consulta pública e será uma deliberação da Anvisa”.
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