Por José Serra
“Brasileiros, começamos hoje a viver a Nova República. Deixemos para trás tudo o que nos separa e trabalhemos sem descanso para recuperar os anos perdidos na ilusão e no confronto estéril. Estou certo de que não nos faltará a benevolência de Deus” – Tancredo Neves, discurso de posse na Presidência da República, lido pelo vice-presidente José Sarney em 15/3/1985
O fecho do discurso de Tancredo consagrou a denominação de uma nova etapa da nossa História: a Nova República. O desenlace do atual processo de impeachment marcará o fim dessa etapa. Desde o ano passado vivemos o pior de dois mundos: a ordem existente agoniza e nada ainda tomou o seu lugar. Uma fase especialmente mórbida, que põe a mostra tudo o que ficou de pior na nossa sociedade.
A Nova República não chegou a materializar a utopia desenhada por Tancredo, mas trouxe avanços importantes.
Na política, a tutela militar deu lugar à participação eleitoral e social das massas populares, com plena liberdade de organização e manifestação e prevalência do Estado de Direito. O presidencialismo de coalizão, arranjo em que o presidente da República obtém maioria no Congresso mediante distribuição de cargos e verbas orçamentárias, garantiu uma governabilidade problemática, mas efetiva.
Na economia, vencemos a superinflação e a insolvência externa, depois de sofrermos seus piores efeitos. A consolidação de novas fronteiras agrícolas coincidiu com a modernização produtiva: o Brasil conta hoje com um agronegócio altamente competitivo. A participação do petróleo importado no consumo total desabou de 80% em 1980 para 40% em 2000 e 20% em 2010, eliminando antiga restrição externa ao crescimento.
A pobreza e as distâncias sociais diminuíram; os indicadores de renda, saúde e educação melhoraram. Fundamentos de um Estado de bem-estar foram assentados com a ampliação das matrículas no ensino fundamental, programas de transferência de renda, a implantação do SUS e do FAT/seguro-desemprego.
Na coluna dos passivos, o Brasil não alcançou, nesse período, condições de crescimento de longo prazo. Em contraste com os 260% de expansão entre 1950 e 1980, o PIB per capita aumentou 50% nas três últimas décadas. Até meados dos anos 90, a superinflação e o desequilíbrio externo travaram a economia. Em seguida, o receio da perda da estabilidade conquistada pelo Plano Real e as sucessivas crises financeiras internacionais retardaram o impulso expansivo.
A grande oportunidade para o desenvolvimento sustentado foi desperdiçada, mesmo, pelo governo Lula. A bonança externa do período, decorrente da elevação dos preços das exportações de alimentos e matérias-primas, foi dissipada pelos aumentos exponenciais da importação de bens de consumo e do turismo externo, em vez de fortalecer a competitividade da economia. Isso resultou de decisões erradas de política monetária e cambial, que levaram a sobrevalorização do real ao paroxismo. O investimento na infraestrutura de energia e transportes e a elevação da carga tributária completaram a receita perfeita para a rápida desindustrialização. O déficit comercial de manufaturados saltou de praticamente zero em 2006 para US$ 81 bilhões em 2010 e US$ 120 bilhões em 2014. Ah, sim, foi nesse período que se armou a ruína da Petrobrás – loteamento, corrupção e investimentos mal feitos e megalomaníacos.
O governo Dilma herdou os custos: taxa de câmbio megavalorizada, déficit em conta corrente em ascensão, infraestrutura indigente, Petrobrás arruinada. Mais: a queda incessante da indústria comprometeu o desempenho da arrecadação tributária. Os gastos públicos permaneceram rígidos. A bonança externa acabou. Com inépcia só superada pela teimosia, seu governo não conseguiu elevar os investimentos na infraestrutura em parcerias com a área privada. Promoveu isenções de tributos caríssimas e ineficientes. Reprimiu os preços de combustíveis e energia elétrica com fins eleitorais, acumulando desequilíbrios nas empresas produtoras e pressões inflacionárias. Resultado: colapso nas contas públicas e mergulho de 9,1% do PIB per capita em dois anos, levando à perda de 3,5 milhões de empregos. As expectativas ruins dos agentes econômicos passaram a cumprir como nunca o papel de profecias que se autorrealizam.
A perda de popularidade na esteira da crise econômica e o isolamento autoimposto da presidente implodiram o presidencialismo de coalizão. Um governo tíbio, adoentado, entrou em fase terminal quando a Lava Jato expôs o aparelhamento de empresas públicas para desfrute dos donos do poder e seguidores. Mazela antiga, como se sabe, mas que assumiu extensão e intensidade inusitadas no admirável mundo novo petista.
Esta recapitulação põe em perspectiva os tremendos desafios do dia seguinte ao desenlace do processo de impeachment. A Nova República acabou. A benevolência divina não nos negará a oportunidade de erguer sobre seus escombros uma nova ordem política e econômica. Mas, como disse Jorge Luis Borges, “até os milagres exigem precondições”. Para que Deus nos ajude serão indispensáveis mudanças no sistema eleitoral e a adoção do parlamentarismo, tornando o Legislativo mais responsável e permitindo, sem traumas, a rápida substituição de governos ruins.
Sem truculência, mas com determinação, será preciso pôr limites à pressão de corporações poderosas sobre as finanças públicas. O patrimonialismo que grassa no setor estatal terá de ser coibido. As políticas sociais devem ser mantidas, mas nos trilhos da eficiência e da inovação. As condições de crescimento do País terão de ser recriadas com base na lisura, na competência e na interação equilibrada dos agentes públicos e privados.
Os próximos meses, sendo otimista, ainda serão de incerteza e sacrifícios para um povo já sofrido. Virar esta página exigirá estabelecer um mínimo de confiança do povo nas instituições democráticas. Eis o maior desafio das lideranças políticas, sociais e intelectuais dispostas a plantar o futuro, em vez de se agarrar aos escombros do passado.
José Serra é senador (PSDB-SP)
Foto: PSDB
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