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Senhor, livrai o Dalton Trevisan dos chatos

do Fábio Campana

Hoje, 14 de junho, Dalton Trevisan completa 88 anos. Firme. Forte. Produz a melhor literatura desta área do planeta. Publico aqui um texto de Vicente Ferreira sobre o Dalton e me junto a ele no pedido: Senhor, livrai o Dalton Trevisan dos chatos.

Dalton Trevisan tem uma das obras mais originais da literatura em língua portuguesa. Originalidade feita, paradoxalmente, da recorrência obsessiva de temas, de personagens, de situações e de uma habilidade para ampliar efeitos linguísticos a partir da redução do universo das palavras.

Contraditório? O resultado é a sua estética da contenção. A busca da concisão. Nem uma palavra a mais. A ironia cortante e o sarcasmo habitual de suas histórias estão em todos os contos — alguns de apenas uma frase — que transmitem todas as aflições e alegrias de homens e mulheres, com erotismo intenso e diálogos incomuns.

Dalton retrata os desastres do amor, as cenas da vida cotidiana, os infernos particulares, a guerra dos sexos. E o faz com personagens exemplarmente banais e através de uma linguagem limpa, sem adereços, nenhum traço barroco.

Há quem não compreenda a repetição como método. O próprio Dalton, em um de seus momentos de humor, escreveu “Quem tem medo de Vampiro?”, para os ignaros. Pelo avesso, o conto é um retrato do autor e de sua literatura. A sátira incorpora as ressalvas mais comuns feitas ao seu estilo e transforma em matéria ficcional a incompreensão de críticos e literatos. Saboreiem:

“Há que de anos escreve ele o mesmo conto? Com pequenas variações, sempre o único João e a sua bendita Maria. Peru bêbado que, no círculo de giz, repete sem arte nem graça os passinhos iguais. Falta-lhe imaginação até para mudar o nome dos personagens. Aqui o eterno João: ‘Conhece que está morta’. Ali a famosa Maria: ‘Você me paga, bandido.’”

No caso de Dalton, seus personagens não retornam porque são excepcionais. Ao contrário, são sempre os mesmos porque são simples, sem traços especiais. Pelo avesso, no mesmo conto, Dalton explicita seu projeto linguístico e temático:

“Quem leu um conto já viu todos. Se leu o primeiro pode antecipar o último – bem antes que o autor. (…) Mais de oitenta palavras não tem o seu pobre vocabulário. O ritmo da frase, tão monótona quanto o único tema, não é binário nem ternário, simplesmente primário. Reduzida ao sujeito sem objeto, carece até de predicado – todos os predicados. Presume de erótico e repete situações da mais grosseira pornografia. No eterno sofá vermelho (de sangue?) a última virgem louca aos loucos beijos com o maior tarado de Curitiba. (…)”

Basta inverter o sentido das afirmações para avaliar a superioridade dessa concepção de literatura, compreendendo na repetição metódica a diferença almejada por Trevisan. Escassez não é sinônimo de precariedade. Se literatura é a arte combinatória do propriamente humano, 80 palavras permitem a reinvenção infinita de um núcleo restrito de histórias. Isso para não mencionar os jogos literários que Trevisan inclui com sutileza no “único” conto que reescreve sem parar.

Por isso, no seu texto, menos é sempre mais. Esteta da concisão, Trevisan vislumbra no conto a possibilidade de um haicai narrativo.

Leiam “O Vampiro de Curitiba”, publicado no livro homônimo, saído em 1965. O texto apresenta um personagem-síntese das obsessões do autor: “Nelsinho, o Delicado”, definido com poucas, mas definitivas pinceladas: “Pobre rapaz na danação dos vinte anos.”, o conto alude à linguagem bíblica, à obra de Machado, à poesia de Drummond:

“Olhe as filhas da cidade, como elas crescem: não trabalham nem fiam, bem que estão gordinhas. Essa é uma das lascivas que gostam de se coçar. Ouça o risco da unha na meia de seda (…).”

A breve menção à passagem bíblica, acerca da beleza espontânea dos lírios do campo, amplifica o efeito de dessacralização provocado pela sequência imediata: “bem que estão gordinhas”!

Na sua peregrinação, o vampiro Nelsinho, na urgência típica dos 20 anos, flerta não apenas com as mulheres mais diversas, mas também com a literatura.

“Cedo a casadinha vai às compras. (…) Ó bracinho nu e rechonchudo – se não quer por que mostra em vez de esconder? -, com uma agulha desenho tatuagem obscena. Tem piedade, Senhor, são tantas, eu tão sozinho.”

Interessante é que essa obra, construída ao longo da vida, saborosa literatura, muitas vezes é esquecida para que a figura do autor, um Dalton Trevisan arredio, avesso aos assédios, horror da imagem de pop star, se torne mais conhecida. Para estes, Dalton escreveu um texto definitivo, que transcrevo:

“Deus, livrai-me dos chatos

Livra-me dos chatos e Te agradecerei, oh Senhor. Rouba-me o emprego, planta-me em cada dedo a Tua unha encravada, mata-me de morte lenta e dolorosa, mas livra-me dos chatos. Há chatos demais, Senhor, nesta Tua cidade. Cobre a minha cabeça de piolhos, arranca os meus olhos das órbitas, Senhor, mas livra-me dos chatos.

Eles podem mais que Teu rum da Jamaica, que Teu éter sulfúrico. De Curitiba fugiram os Teus anjos, Senhor e, se fugiram, eles que eram anjos, o que será de mim?

Tuas pestes, Senhor, poupam aos chatos, são eles intocáveis ao Teu dedo? Claudionor eu Te perdôo, Senhor, a Valquiria que embebeu as vestes em álcool e ateou fogo eu Te perdôo, Senhor, as duas senhoras de nomes Lucinda e Perciliana que se engalfinharam durante a missa na Tua catedral, eu Te perdôo porque Te entendo, Senhor.

Não Te entendo, oh Senhor, por que poupas a eles, que são chatos. Por eles se perde o mel que a abelha ainda não cozinhou. Eles estragam o gosto do café ainda na xícara e azedam o leite no seio da mulher grávida.

Endureceste o coração contra mim: sou eu Faraó e são os chatos Teu povo? Não me poupes, Senhor, entre os malditos é o meu lugar. Abate-me com Tua mão pesada, eu Te abençoarei. Sacode-me no pó como fizeste com Job, ah, mas os amigos que mandaste consolar a Job não eram eles três chatos, Senhor?”

Dalton Trevisan,

Senhor, em Lamentações de Curitiba, 1961