por Renan Machado
foto: Amanda Kranholdt
Revista Ideias
Ele caminha por estas ruas que conhecemos e desconhecemos. Há tempos que Zé da Bíblia e eu nos desencontrávamos. Se por ventura eu enfrentava o calor fora de época caminhando pela Rua XV, ele entoava seus discursos, a plenos pulmões, em frente ao Palácio Iguaçu. Vez ou outra no prédio da Prefeitura Municipal. Ainda mais em dias de manifestação. Por outro lado, se eu me sentava debaixo das árvores defronte a sede do Governo do Estado, esperava infinitamente. Nada de Zé. Acredito que fosse mera divergência temporal. Caminhávamos pelos mesmos lugares, contudo, um pela manhã e outro à tarde. Ou vice-versa. Os relógios em desalinho. Eu o procurava, bloquinho e caneta nas mãos. Ele, não que fugisse. Seguia seu caminho. Carregava a Bíblia de trejeitos finos e boa leitura. Capa negra, escritos em dourado. Um exemplar, já surrado, da Constituição Federal. Jornais debaixo do braço.
Aconteceu no dia 16 de outubro de 2012. Muito antes disso, Zé da Bíblia já fazia parte de meu imaginário. Mas nunca havíamos conversado. Ainda que uma, talvez duas, no máximo três vezes, pensei tê-lo visto me cumprimentar discreto, tocando a aba do chapéu branco. Possibilidade contestável, diferente do Zé da Bíblia como figura emblemática de Curitiba. Isso é incontestável. Centenas, milhares de curitibanos, principalmente os caminhantes do Centro, o conhecem. Também viventes do subúrbio. Turistas fotografam-no apreensivos. Num misto de cautela e curiosidade, tão logo registram o senhor de baixa estatura, mirrado, mas de cordas vocais para lá de potentes, escapam discretos. Carregam-no em imagem para suas cidades. Talvez temam retaliação. Qual o quê. Mal sabem o quão gentil Zé da Bíblia pode ser.
No dito dia 16, eu procurava o Zé, que, em apresentação formal de RG, é Manir Ramalho de Oliveira, natural do Norte do Paraná, nascido em 1º de maio de 1948. Eu descia rumo à Avenida Cândido de Abreu, a bordo do ligeirinho Boqueirão/Centro Cívico, não lotado, mas bastante cheio. O horário de almoço se aproximava. Sentado num banco único, eu, despretensioso, pois imaginava me desencontrar uma vez mais com Zé da Bíblia, lia um livro. Presente de um amigo: “Um escritor no fim do mundo”, relato do Juremir Machado da Silva sobre a viagem que fez com Michel Houellebecq à Patagônia. O ônibus entrava na curva ao lado do Palácio Iguaçu quando o vi. Não foi difícil, dado o fato de Zé da Bíblia estar trajando uma camiseta cor de rosa berrante. Um jeans azul. O tradicional chapéu protegia-lhe o cocuruto. Estava indo embora. De costas para o Palácio, caminhava com passos ligeiros. Às pressas pulei do banco. Uma guria, absorta nos fones de ouvido, sorriu e tomou meu lugar. Esgueirei-me pela massa de passageiros, felizmente a tempo de desembarcar na estação seguinte. Uma vez sobre os petit pave, caminhei quase correndo. Alcancei o Zé em frente à Prefeitura. Ofegante. “Seu Manir?”, disparei. Ele virou-se calmo, palavras prontas na boca: “A bateria de fogo aquece o ferro e o ar gira o ventilador, pois ar vira ar”. Poupei-o de divagações longas: “Seu Manir, gostaria de contar a sua história. Posso acompanhá-lo?”. Interpretei o leve sorriso e o aceno de mão como um sim.
Tratei-o por “Seu Manir” quase toda a conversa. Poucos o conhecem assim. Escorreguei sem querer uma única vez. Zé da Bíblia não ligou. Questionado acerca de quanto tempo é reconhecido pelo popular apelido, responde simples: “Não me lembro, mas faz bastante”. Pelo horário, imaginei que ele iria almoçar. Sabia que Zé costumava almoçar em um restaurante próximo, ali mesmo no Centro Cívico. Mas passamos reto pelo local. “Hoje vou almoçar no Centro”, disse. Seu Manir, ou Zé da Bíblia, é o nono filho de doze irmãos. Nascido no interior, vive em Curitiba desde 1975. Quando jovem, trabalhou em uma construtora que atuava no ramo de saneamento. “Viajei o Brasil todo trabalhando, conheço bem a pátria amada”, afirma. Depois de anos como encarregado da empresa, há cerca de duas décadas tomou uma decisão: “decidi pregar a paz e a palavra de Deus pelo mundo”. Ao dizer isso, Zé da Bíblia estacou e indicou a Avenida Cândido de Abreu, de ponta a ponta, com as mãos. “Veja, todo mundo precisa do Papai, até aqueles que caminham por aí e acham que não”, completa.
Continuamos a caminhada em ritmo ligeiro. Paramos algumas vezes. Zé da Bíblia pedia: “Só um pouco, espera aqui”. Adentrava num estacionamento. Conversava rápido com o homem da cancela e retornava. De pronto justificava a parada: “ele guarda o jornal pra mim”. E voltava a falar da bateria de fogo. Em frente ao Shopping Mueller indicava a estrutura imponente do prédio. “A bateria de fogo aquece o ferro, filho. O ferro sustenta o concreto”, afirma.
Seu Manir é viúvo e pai de quatro filhos. Com exceção de um deles, os outros vivem em Curitiba. “Um deles é mecânico. Tenho duas meninas: uma é arquiteta, a outra trabalha numa empresa de telefonia. O menino caçula é construtor civil, mora na Itália”, diz. Segundo ele, após a morte da primeira parceira, não sucumbiu ao luto. “Arranjei outra mulher, me amiguei de novo. Hoje vivo com ela, lá para os lados da Cidade Industrial”.
Enquanto subíamos a Cândido de Abreu, Zé da Bíblia lamentava algo baixinho. Sacudia a cabeça. Perguntei-o qual o motivo do aborrecimento. Respondeu-me: “tudo isso, filho. Bancos, lojas de roupas, lanchonetes. E para tudo precisa-se de dinheiro, bastante ou pouco. Seria diferente se soubessem viver na lei do Papai. Ninguém precisaria de dinheiro”. Zé deteve-se no meio do passeio. Parei ao seu lado. O fluxo de gente esbarrava em nós. Ele abriu a Bíblia no livro de Mateus. “Está aqui, nas escrituras, que irmãos, vivendo na palavra do Papai, não seriam de sangue. Todos seriam irmãos.”
Cruzamos a Praça Tiradentes. Finalmente perguntei o que as pessoas achavam de seus discursos no Centro Cívico. “Não acham nada. Eu tento ensiná-los que o único caminho é o Papai. E a paz. Eu dou a mão para eles. Mas eles torcem a mão da gente, então não adianta”, afirma. Porém, Seu Manir é obstinado. “Mesmo assim vou todos os dias, sem falta”, completa.
Zé da Bíblia está de olho
Engana-se quem acredita na falta de senso e informação do Zé. Ele não é apenas grito. Muito pelo contrário: conhece a cidade melhor que muitos. Após uma boa caminhada, enfim chegávamos ao local do almoço do Seu Manir, na Rua XV. Um restaurante de sobre- loja. “Se não almoço lá perto do Jornal do Estado, almoço aqui”, ele disse. Entramos no edifício antigo e atravessamos um extenso pavilhão, no térreo, recortado em boxes de comércio que vendiam de eletrônicos a roupas em promoção. Nos fundos havia uma escada de latão que dava acesso ao restaurante. Subimos. Sentamo-nos numa mesa de canto, próxima à janela. “Quer almoçar?”, perguntou Zé. Fiz que não. Ele serviu o prato e sentou-se a minha frente.
Uma mulher de meia-idade apareceu para anotar as bebidas. “Dois refrigerantes, um pra mim e outro pra ele”, pediu Zé. Hesitei. “Estou sem dinheiro, Zé”, confessei. Cartões, de qualquer tipo, não eram aceitos no restaurante. Tampouco o passe eletrônico para ônibus que eu carregava no bolso. “Não, não, é por minha conta”, tranquilizou-me. Naturalmente agradeci, mas não dei trégua. Questionei-o logo acerca da Copa do Mundo. Zé sacudiu a cabeça com desânimo. “Tudo dinheiro e espetáculo. Dá na mesma ver a tal Copa e uns meninos jogando na rua”, afirma. Para Zé da Bíblia, que diz gostar de futebol, o objetivo principal dos jogadores, na Copa do Mundo, passa longe de jogar por seu país. “Querem só a fama. Jogar, jogam pouco”, atesta.
Encerramos o assunto Copa do Mundo quando perguntei se Zé da Bíblia aceitaria ser fotografado. “Claro”, riu-se ele. Lembrei-o da fotografia que rodara pela internet de sua ilustre presença na Marcha das Vadias, manifestação ocorrida na cidade. Aí o Zé gargalhou. “É verdade, né?”, indaga. Confirmo. “Uma bagunça, mas achei divertido”, completa.
“E por falar em foto” – eu disse – “que achou do ‘santinho’ que fizeram em seu nome?”. O sorriso largo que enfeitava Zé da Bíblia, de súbito, sumiu. “Não gostei mesmo”, afirma. Durante a campanha eleitoral, surgiram “santinhos” de Zé da Bíblia como candidato a vereador. “Zé da Bíblia – o candidato ‘nóis na fita”, informavam as propagandas falaciosas. “De mau gosto, me desagradou”, completa.
Decidi mudar de assunto. Conversamos sobre vários temas, sem aprofundamento, até que Seu Manir findasse o almoço. Ele levantou e pagou a conta. Descemos as escadas e tomamos, novamente, a Rua XV. “Continua a me acompanhar?”, ele perguntou. Eu disse que não, precisaria correr. Cumprimentamo-nos. “Vai com Deus, filho”, disse Seu Manir. Acenei e tomei rumo em direção à Praça Tiradentes. Tirei do bolso o telefone celular e liguei para a fotógrafa Amanda Kranholdt: “consegui falar com o Zé, amanhã fotografamos ele o.k.?”. Ela confirmou. “Espero que ele esteja com a mesma camiseta cor de rosa, para que eu posso incluí-la na história”, brinquei. Mal sabia eu que teria essa sorte. Quanto a Zé da Bíblia, Seu Manir, um patrimônio de Curitiba, seguiu pela Rua XV. “A bateria de fogo…”, entoava. Incansável, no outro dia estaria lá, munido de Bíblia e Constituição. Pois estas veredas, Zé não pretende abandonar tão cedo.
Deixe um comentário