A Argentina temeu que as ambições internacionais do governo Lula levassem o Brasil a rever seus compromissos na área de proliferação nuclear – caminhando perigosamente em direção à bomba atômica.
Em uma conversa reservada com diplomatas americanos no Natal de 2009, funcionários argentinos disseram que “luzes amarelas” acenderam em Buenos Aires diante da aproximação do Brasil com o Irã de Mahmoud Ahmadinejad e da abertura de uma embaixada brasileira na Coreia do Norte.O telegrama diplomático comenta ainda que o governo argentino chegou a preparar resposta para a eventualidade de o Brasil construir uma arma nuclear, mas viu com alívio a eleição de Dilma em 2011, “por acreditarem que nenhum sucessor tentaria sustentar a arriscada política externa de Lula”.
O relato completo do encontro está entre as centenas de despachos da Embaixada dos EUA em Buenos Aires revelados pelo WikiLeaks.
Leia abaixo o telegrama traduzido para o português.
CONFIDENCIAL BUENOS AIRES 001305SIPDISE.O. 12958: DECL: 2034/12/24TAGS: PREL, KNNP, PARM, PGOV, BR, ARASSUNTO: (C) MFA (Ministério das Relações Exteriores) argentino compartilha algumas preocupações a respeito da política externa e do potencial nuclear do BrasilREF: BRASÍLIA 09 MDA 839 Classificado como sigiloso por: Alex Featherstone, A/DCM; MOTIVO: 1.4(B), (D)1.
Resumo: Representantes do MFA da Argentina para a não proliferação nuclear mostraram-se preocupados com os rumos tomados pela política de segurança do Brasil nos últimos anos do governo Lula, numa reunião realizada no dia 10 de dezembro. Eram apenas “sinais de advertência”, mas os argentinos mostraram-se temerosos diante da aproximação do Brasil com o Irã e a Coreia do Norte e de alguns comentários extraoficiais feitos no Brasil a respeito da posição estratégica deste país ao lado dos países do BRIC que têm a arma nuclear.
O MFA da Argentina chegou até a preparar sua resposta na eventualidade pouco provável de que o Brasil construa uma arma nuclear. Representantes do GOA (Governo da Argentina) enfatizaram que enquanto o Brasil continuar aceitando as salvaguardas e o compromisso com a transparência estabelecidos pela AIEA e pela Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC), não haverá muito com que se preocupar.
Não obstante, enxergaram a mudança na presidência do Brasil em 2011 com certo alívio, por acreditarem que nenhum sucessor tentaria sustentar a arriscada política externa de Lula, um presidente extremamente popular, particularmente no início do mandato.2. O oficial do PolMil esteve no dia 10 de dezembro na Diretório de Segurança Internacional e Assuntos Nucleares e Espaciais (DIGAN) do Ministério das Relações Exteriores da Argentina.
A embaixada solicitou o encontro para discutir as posições argentinas em relação ao Brasil. Representaram o DIGAN seu experiente e respeitado diretor, Gustavo Ainchil, seu vice-diretor Alberto Dojas, e a funcionária Lorena Capra.
A participação da equipe completa do DIGAN reforça a impressão da embaixada de que os argentinos decidiram de antemão compartilhar sua preocupação com o USG (Governo dos Estados Unidos)(conclusão corroborada por uma visita anterior do PolCouns argentino à embaixada americana em Brasília para expor suas preocupações).3. (C) Ainchil começou dizendo que eventos recentes no Brasil haviam chamado a atenção da Argentina.
A recepção do presidente iraniano Ahmadinejad havia sido particularmente problemática para a Argentina, considerando suas questões com o Irã. A visita de Ahmadinejad, somada à decisão do Brasil de abrir uma missão diplomática na Coreia do Norte, havia causado certa preocupação em Buenos Aires com relação ao compromisso do país com a diplomacia de não proliferação internacional.
Mais diretamente, sua velha resistência ao Protocolo Adicional (PA) do Tratado de Não Proliferação Nuclear era preocupante. (Nota: Ainchil confirmou separadamente a um funcionário político que, embora a ABACC e a AIEA tivessem acesso a instalações civis e militares nas quais eram usados materiais nucleares, elas não contavam com o acesso mais amplo e imediato previsto no PA.
Sob os termos atuais, o Brasil protegia certas tecnologias nucleares, como centrífugas, dos inspetores argentinos, enquanto adotava medidas elaboradas para demonstrar que combustíveis e materiais nucleares haviam sido computados em sua totalidade no processo. Fim da nota.)
4. (C) A “luz amarela” foi acesa na Argentina, disse Ainchil, por causa desses eventos e também de comentários de vários ex-funcionários e acadêmicos manifestando certa frustração com o fato de o Brasil ter sido proibido de se juntar aos outros países do BRIC em pé de igualdade em termos de capacidades para a fabricação de armas nucleares.
Além disso, com base em suas percepções de diplomatas e ex-diplomatas brasileiros em encontros multilaterais, Ainchil especulou que alguns membros do GOB (governo do Brasil) sentiam-se fortemente pressionados a explicar em detalhes e defender as posições do país diante do PA e sua política de defesa.5. (C) Mais genericamente, Ainchil estava preocupado com o ritmo das compras militares brasileiras.
O governo estava particularmente incomodado com uma visita a Buenos Aires do ministro da Defesa brasileiro, Nelson Jobim, na qual ele fez um pronunciamento público sem coordenação com o GOA. De acordo com Ainchil, funcionários dos ministérios da Defesa e das Relações Exteriores da Argentina tinham sido instruídos por seus chefes a não comparecer. Ainchil sugeriu que a influência de Jobim era vista como excessiva dentro do GOB.Garantias——
6.(C) Ainchil e Dojas descreveram a reação da Argentina a vizinhos capazes de gastar muito mais que a Argentina na modernização militar. No caso do Chile, o governo da Argentina (GOA) entendia que as receitas da exploração do cobre ofereciam um orçamento fixo para aquisições militares, mas que o Chile havia adotado medidas para amenizar qualquer temor da Argentina de ser superada em tecnologia militar.
Uma delas era o compromisso do Chile de desenvolver um batalhão de paz conjunto com a Argentina, o Cruz del Sur. A segunda era o foco do Chile em retirar as minas de sua fronteira com a Argentina, um sinal impressionante de confiança na relação bilateral.
7 (C) Eles disseram que, no caso do Brasil, a Argentina confiava no regime de não proliferação internacional para refrear o País. Embora o Acordo Nuclear EUA-Índia “tivesse sido um precedente terrível para o Brasil”, disse Ainchil, o País continuaria relutando em correr os vários riscos envolvidos na violação de seus acordos regionais e internacionais.
No momento, a Argentina via o Brasil como um risco de proliferação do mesmo modo como via a Alemanha, o Japão ou a Coreia do Sul – países que poderiam desenvolver e detonar armas nucleares rapidamente se quisessem fazê-lo, mas cujo compromisso forte e de bases democráticas com as regras internacionais evitaria esta decisão em quase todos os cenários.8. (C) Ainchil disse ainda que a Argentina contava com uma transição presidencial no Brasil em 2011.
Embora sublinhasse o respeito da Argentina pelo presidente Lula, ele sugeriu que a popularidade única de Lula e seu distanciamento de considerações políticas no final do mandato tinham permitido que ele se tornasse um aventureiro na política externa e nas questões de defesa.
Qualquer sucessor, especulou Ainchil, se afastaria de tais políticas controvertidas em seus primeiros anos de mandato, talvez recuando na relação com o Irã e cooperando mais com novos instrumentos de construção de confiança nuclear.Estratégia—9. (C) O vice-diretor Dojas sugeriu que o Brasil tinha de chegar por conta própria a uma nova perspectiva em relação ao PA. A pressão externa seria contraproducente.
Por essa razão, a Argentina acreditava que não poderia assinar o PA sem o Brasil – fazê-lo significaria encurralar o Brasil na questão e, potencialmente, provocar um maior endurecimento de sua posição.
No entanto, o GOA acreditava que abordagens moderadas e o diálogo com o Brasil eram importantes, e sugeriu que os Estados Unidos deveriam continuar a desempenhar um papel nessa área. Especificamente, Dojas sugeriu que o USG se aproxime logo dos candidatos presidenciais Dilma Rousseff e José Serra. os favoritos nas pesquisas.
10. (C) Ainchil indicou que o MFA considerava quais medidas deveria adotar na eventualidade improvável de seu poderoso vizinho abandonar a ABACC ou, pior, desenvolver a capacidade de construir armas nucleares. Ainchil acreditava que a Argentina escolheria o caminho de desenvolver e implementar uma tecnologia nuclear pacífica avançada para demonstrar capacidade, sem de fato direcionar-se à construção de armas nucleares. Ele mencionou um navio quebra-gelo de propulsão nuclear como um desses projetos de demonstração.Comentário—-
11. (C) Claramente Ainchil e Dojas pretendiam partilhar algumas preocupações ou ansiedades em relação ao Brasil que suspeitamos estarem crescendo em determinados setores do governo argentino. Eles parecem desejar que os EUA adotem a mesma abordagem, trabalhando amigavelmente com Brasília no sentido de uma maior cooperação no regime internacional de não proliferação sem exercer uma pressão excessiva.
Eles esperam que o Brasil não avance muito mais antes de 2011 e que, depois desta data, uma nova liderança política vai renovar seu compromisso com a transparência e a cooperação regional em relação à não proliferação.
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