77% das armas dos criminosos foram feitas no Brasil, diz estudo
Pesquisa da ONG Viva Rio com 770 mil armas recolhidas pela Polícia carioca desmonta tese de que criminosos são abastecidos por contrabando internacional. Maioria das armas é fabricada no RS e é desviada por policiais e lojistas.
Bia Barbosa – Carta Maior
SÃO PAULO – Circulam no mundo hoje – nos 140 países onde há estimativas – cerca de 700 milhões de armas pequenas. Calcula-se que 59% delas estejam nas mãos da sociedade, ou seja, não estão nas mãos do Estado, da polícia e das forças armadas. Mais de 17 milhões dessas 700 milhões de armas estão no Brasil, sendo que aqui 90% delas estão nas mãos da população. Ou seja, o Brasil é um país armado. Das armas em circulação, metade é ilegal; e dessas ilegais, metade pertence a criminosos – ao todo, 4 milhões. Ou seja, a outra metade, sobre a qual não se tem qualquer controle, são fortemente cobiçadas pela criminalidade, já que não são registradas e podem, portanto, ser usadas indiscriminadamente.
Um estudo realizado pela organização não governamental Viva Rio com 770 mil armas recolhidas pela polícia carioca revelou que 88% do que foi apreendido com os bandidos eram pistolas e revólveres – 77% deles brasileiros, fabricados sobretudo no Rio Grande do Sul. “Ou seja, a polícia sempre trabalhou em bases erradas, achando que as armas que sustentavam o crime no Brasil vinham do contrabando. Isso acontece porque, hoje, somente quatro Estados brasileiros – Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Bahia – possuem índices decentes sobre armas de fogo”, explica o sociólogo Antônio Rangel Bandeira, do Viva Rio, que vem assessorando a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) do Tráfico de Armas.
Nas próximas semanas, depois de um ano e meio de trabalho e de ouvir mais de 200 pessoas, a CPI deve divulgar suas conclusões. Uma delas é a de que, em todo o país, 70% das armas apreendidas com bandidos de organizações criminosas foram vendidas previamente para o Estado. Grande parte para a Polícia Militar, em seguida para o Exército.
“A maior fonte de abastecimento dos bandidos no país é a instituição que pagamos para combater o crime. Hoje há policiais que vendem até metralhadora antiaérea para os traficantes”, conta Bandeira.
A segunda parcela de armas com os bandidos foram vendidas em lojas, cujo controle é feito em teoria pelo Exército. Uma das propostas da CPI será a de passar essa fiscalização para as mãos da Polícia Federal.
Somente 20% das armas com organizações criminosas vêm do exterior, a maioria de armamentos mais potentes. Muitas, no entanto, são fabricadas aqui dentro do país, como a pistola 9 mm fabricada pela brasileira Taurus, que não pode comercializá-la aqui dentro mas que exporta para o Paraguai, onde as fronteiras com o Brasil dificilmente são controladas. Na década de 90, o maior comprador de armas brasileiras foi os Estados Unidos. O segundo maior, com uma população infinitamente menor, foi o Paraguai.
“Como o povo paraguaio pode precisar de tantas armas? A questão é que elas não ficam 15 minutos lá. Batem e voltam, direto para o crime organizado no Brasil. As cidades de fronteiras de países como Paraguai, Uruguai e Bolívia tem mais lojas de armas do que suas capitais. E isso, até bem pouco tempo, era ignorado sistematicamente pelo governo brasileiro”, afirma Denis Mizne, diretor executivo do Instituto Sou da Paz.
Para tentar diminuir essa porta aberta de entrada de armas brasileiras não autorizadas no país, o governo criou uma alíquota de 150% na exportação para países fronteiriços, o que reduziu consideravelmente o tráfico. Recentemente, em meio aos ataques do PCC a São Paulo, a chamada bancada da bala atuou para a derrubada dessa alíquota, mas foi bloqueada quando a sociedade civil gritou.
Neste cenário, a proposta de organizações não governamentais que trabalham com a questão da segurança pública é intensificar o controle das armas pequenas fabricadas no Brasil. Nesta quarta-feira (13), elas participaram do Seminário Internacional sobre Crime Organizado, realizado na Fundação Getúlio Vargas. Na opinião de algumas entidades, para se combater o crime organizado é mais fácil rastrear o que é fabricado nas seis indústrias que funcionam dentro do país do que controlar o tráfico de drogas. “O que caracteriza o crime organizado é arma e droga. São as duas pernas, e uma depende da outra. Enquanto é difícil desbaratar o tráfico de drogas, porque ele é clandestino, de armas é facílimo: 90% são fabricadas em endereço conhecido, vendidas legalmente. É só acompanhar a arma e ver como ela chega até as quadrilhas”, acredita Antônio Rangel Bandeira.
Debate torto
Na opinião do diretor executivo do Instituto Sou da Paz, o debate público no Brasil sobre o controle de armas está equivocado. De um lado, estaria a imensa maioria de especialistas em segurança público, boa parte da polícia e organizações da sociedade civil. De outro, os fabricantes, comerciantes de armas, colecionadores e aqueles que, “por hobby”, gostam de andar armados.
“Ou seja, dentro do Congresso, o debate é entre os que representam as industrias, que ganham dinheiro com isso, e os que estão realmente preocupados com a questão da segurança pública. É um debate torto, que faz com que a gente perca a real dimensão do problema. Por isso temos que reposicioná-lo”, acredita Denis Mizne. “Há países onde há um grande número de armas em circulação e não necessariamente tanta violência, mas aqui a arma potencializa os conflitos. Por isso estamos matando tanta gente”, avalia.
No Japão há 20 mortes por ano. Na Inglaterra, 30. Na Colômbia, que vive um conflito, são 17 mil mortos por ano. No Brasil, 36 mil – 100 por dia.
“Hoje o maior cliente da Companhia Brasileira de Cartuchos, a CBC, que detém o monopólio da produção de munição no Brasil é o crime organizado. Pelo Estatuto do Desarmamento, uma pessoa comum pode comprar somente 50 cartuchos por ano; e as polícias têm trabalhado em geral com pouca munição. Portanto, são essas organizações que pagam a conta da CBC, que é quem paga a conta daqueles que estão no Congresso dizendo se um maior controle de armas é bom ou não para o Brasil”, critica Mizne. “Há interesses econômicos muito fortes e falta de vontade política pra não se controlar armas. E o preço são as milhares de vidas que estão sendo perdidas”, completa.
Com o Estatuto do Desarmamento, que estabeleceu uma maior rigidez para a venda de armas e proibiu o porte, em 2004, depois de 13 anos, houve pela primeira vez uma redução no índice de homicídios no país. Mais de 8% de queda. De acordo com a Unesco, mais de 5 mil vidas teriam sido salvas pelos efeitos do Estatuto. No entanto, atualmente, circulam no Congresso 26 projetos de lei que ameaçam a lei. Um deles é de autoria do deputado Luiz Antônio Fleury Filho, um dos maiores articuladores do “não” no referendo do desarmamento e que agora usa isso em sua campanha eleitoral.
“Além disso, Fleury votou contra a marcação das munições e contra a criação da tipificação do crime de tráfico internacional de armas. A favor de quem se vota contra isso? Essas pessoas não estão ao lado da segurança pública e da vida. A CBC e Taurus vão ganhar mais dinheiro quanto mais violento for o país. A violência é um ingrediente de sucesso para as indústrias de armas. Por isso elas não podem preponderar num debate sobre segurança pública”, pondera Mizne. “Foi esse o lado que disse, durante o referendo, que não podíamos entregar nossas armas porque ficaríamos a mercê do crime. E hoje a gente continua tão ou mais a mercê do que estávamos antes. Mesmo assim, discutimos o problema da segurança pública e não discutimos o controle de armas”, afirma.
Em outubro, os países membros das Nações Unidas se reúnem para tentar assinar um tratado internacional de controle de armas internacional, que vem sendo discutido há muitos anos. A proposta é criar um acordo para regular o comércio, e não proibi-lo, para que cada país diga para onde está exportando e tenha cuidados para não exportar para nações em guerra, para países que não possuem nenhum tipo de controle de armas e para aqueles acusados de graves violações de direitos humanos. O objetivo dessas organizações a partir de agora é se mobilizar para pressionar o Brasil para que a postura do país nas negociações ajude a superar o lobby de países que se negam a controlar suas armas.
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