“Por todos os lados existem vacilações, traições e às vezes até desonestidade. Não obstante, não é assim que se faz política, é preciso evitar esse passionalismo. Se rompo com o PMDB, rompo com cem deputados… Cadê a governabilidade? Como se dá tranquilidade para que o país possa avançar? Este é o duro ofício de ser presidente da República sendo honesto, tendo projeto, tendo propósito, pensando o tempo todo só no bem do país e do povo: engolir sapos sem cessar e ainda, de repente, as pessoas pensarem que o sapo é você.”
O novo volume dos Diários da Presidência (Companhia das Letras) de Fernando Henrique Cardoso, que cobre os anos de 1999 e 2000, é até agora o mais angustiado da série. A economia ficou à deriva, após uma desastrada desvalorização do real, a popularidade caiu e o Parlamento passou a cobrar mais caro pelo apoio. Mesmo assim, o governo aprovou medidas importantes, como a Lei de Responsabilidade Fiscal. Para FHC, que vê na crise atual pontos de contato com o que testemunhou em seu governo, a atual crise do Congresso é uma oportunidade. “Só se muda nessa hora. Quando os interesses estão estruturados, não muda”, diz.
ÉPOCA – No livro, ao comentar a prisão de Chico Lopes (ex-presidente do Banco Central), o senhor reclama de exageros da Justiça. Para muitos críticos, o Judiciário alcançou um protagonismo exagerado. O senhor concorda?
Fernando Henrique Cardoso – Não acho negativo esse protagonismo do Ministério Público e do Judiciário, porque plantamos essa semente na Constituição de 1988. A Justiça está funcionando. Quando houver algum presidente com força popular, as instituições que estão aí vão ter menos protagonismo. Elas cresceram muito porque quem estava no exercício, a Dilma, perdeu protagonismo. Claro, essa operação [Carne Fraca] é um excesso. Mas, por mais que eventuais vítimas queiram fazer uma lei para parar a polícia ou a Procuradoria, não vão conseguir. A opinião pública está ativa.
ÉPOCA – Para escapar da Lava Jato, políticos voltaram a discutir reforma política e voto em lista. Há ambiente para isso?
FHC – Até setembro, dá para aprovar a cláusula de barreira e a proibição de coligação na eleição proporcional. Depois, há um grande problema: como financiar a eleição. Esse é um problema no mundo todo. É o governo, é o contribuinte? Eu sugeri uma coisa: o dinheiro, mesmo com recurso privado, ficar com o Supremo Tribunal Federal, que abre uma conta para os partidos. Na campanha, o partido vai lá, tira e não usa para outros fins. Vai passar? Temos de amadurecer a discussão sobre quem financia a democracia.
ÉPOCA – No livro, o senhor reclama da resistência da classe média em abrir mão de privilégios. Para o senhor, Temer tem chance de aprovar a reforma da Previdência?
FHC – Eu fiz alguma coisa, mas não consegui o fundamental, que era a idade mínima. Perdi por 1 voto… As corporações eram contra também, falam em nome dos pobres para defender na verdade o interesse dos que… não são os ricos, mas os que estão melhor. Como na época do Plano Real, hoje o Congresso está desarticulado. Havia a CPI dos Anões do Orçamento, agora há a Lava Jato. Só se muda nessa hora. Quando os interesses estão estruturados, não muda.
ÉPOCA – No diário, o senhor já fala em ventos diferentes soprando na política. Registra que o único tucano com trânsito no novo cenário era Ciro Gomes, mas que o PSDB o perdeu…
FHC – Ciro Gomes não tem trânsito por esses novos ventos. É um radical livre. Não tem amarras com partidos, com ideias. O que ele expressa? Não sei. Não acho impossível, mas acho difícil. Ciro tem uma técnica para subir: atacar quem está subindo. Agora, quem está subindo? É o Doria.
ÉPOCA – Doria é uma nova geração?
FHC – Ele é. O Aécio também é da nova geração. Não estou dizendo que o Geraldo [Alckmin]… O Geraldo e o [José] Serra são de outra geração, o Serra é mais de outra ainda. Não estou individualizando… Eu sou da outra também, sou mais antigo ainda. Tenho 85 anos… Chegou a hora de mudar a geração, mas não adianta dizer só isso. As pessoas da velha geração precisam perceber. Eu não fiz isso? Eu tentei ficar, ser líder do PSDB? Não tentei. Sou presidente de honra, que não é nada. Nem quero. Porque não dá… Vai se distrair com outra coisa. Continua com seu compromisso público, sei lá, mas não precisa estar acotovelando os outros. Tem de ter uma certa noção, é difícil. Quando não tem noção, sofre. Sofre.
ÉPOCA – De onde pode vir a renovação?
FHC – Neste momento há um certo vazio, aqui, não é? Os líderes que foram, foram. Mesmo que não saibam que foram, foram. Muita gente já morreu, e há algumas pessoas que querem reencarnar… Não dá, não dá para reencarnar. É melhor ficar no céu. Então, acho que aqui não se vê ainda, mas é possível que haja um… Por que achar que vai ser do mal? Pode não ser. Pega a Alemanha… A Angela Merkel, que no início todo mundo tachou como de direita, hoje é a principal voz do mundo livre.
ÉPOCA – Como fortalecer os partidos num momento de tanto descrédito dos
políticos?
FHC – Eles têm de agir de uma maneira diferente. Quando eu disse aquele negócio do caixa dois, eu disse que primeiro tem de reconhecer o erro. É condição necessária. Para fazer [acordo de] leniência, as empresas não estão reconhecendo? Como é que o partido não vai reconhecer? É inacreditável que o PT até hoje não tenha esclarecido nada nem a eles próprios. Se o PSDB for pego, se houver condenação, tem de dizer: “Eu errei”. Não dá para tapar o sol com a peneira.
ÉPOCA – A presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, disse que não existe caixa um, caixa dois, caixa três. É tudo crime…
FHC – É verdade, mas são crimes de naturezas diferentes. Corrupção é dar ou pegar alguma coisa em função de uma vantagem para você. Se essa coisa for pública, pior ainda. Caixa dois é contra a lei? É, a lei eleitoral é clara e diz que pode ter punição. Agora, quem matou tem uma pena diferente de quem deu uma surra. Minha declaração foi interpretada como tentativa de evitar punições, mas não é.
ÉPOCA – O senhor concorda com a avaliação de que, por causa da Lava Jato, estamos vivendo o fim do ciclo político que foi comandado por PSDB e PT?
FHC – O mundo todo está assim. Na política democrática, você tem de levar em consideração a mídia. E, agora, a mídia não é só a mídia formal, é o Instagram, o Twitter. Isso de alguma maneira desestabilizou vários sistemas políticos. Na França, nem o Partido Conservador tradicional nem os socialistas devem ganhar a eleição. Nós estamos vivendo esse momento no Brasil. A Lava Jato faz parte disso. Ela foi possibilitada porque você tem acesso à transparência, às contas no exterior e tem a capacidade de desmistificar o poder. Não está claro para que lado vamos. Mas para algum outro lado nós vamos.
“Na minha gestão, não consegui o fundamental, a idade mínima
ÉPOCA – O senador Aécio Neves falou sobre o risco de a Lava Jato redundar num cenário de terra arrasada, aberto a aventureiros…
FHC – Isso ocorreu talvez na Itália, com o Silvio Berlusconi. Mas eu acho que isso não é inevitável. A Lava Jato faz parte desse mundo moderno, e as tentativas de segurar não vão dar certo, porque o mundo hoje é de outro tipo. No relato do livro, você já nota o começo da decomposição do sistema político. Hoje ele está decomposto. Falta o cimento que liga tudo, que é a confiança. As pessoas não confiam nos partidos, nos políticos e generalizam. Mas vão votar e vão ter de escolher alguém. Quem vai ser? Será quem for capaz de se sintonizar com o sentimento da população naquele momento. Nos Estados Unidos, o Trump derrotou todos os establishments. Pode surgir um fenômeno no Brasil? Pode.
ÉPOCA – Em fevereiro, Jair Bolsonaro passou Aécio Neves e perde apenas de Lula nas pesquisas de intenção de voto para 2018. É um candidato viável?
FHC – A pessoa que mais aparece nessas horas é o bizarro. O Trump é um pouco bizarro. Quando eu ganhei as eleições contra o Lula, foi uma decepção. Eu ganhar não tinha nada de extraordinário, sou um professor universitário. O Lula era novo, um fato inédito. É natural que as pessoas queiram isso. Uma certa bizarrice projeta. Não creio que Bolsonaro tenha expressão nacional maior.
ÉPOCA – Existe alguma possibilidade de acordo nacional? Dá para fazer algum acordo sem PT ou Lula?
FHC – É difícil fazer sem o PT. Mas acordo sobre o quê? Não pode ser um acordo para evitar alguma coisa. Tem de ser um acordo público, desde o começo, para pensar no futuro do Brasil. Não é só com o PT. Tem de ser coordenado pelo presidente, que é quem tem visão para levar adiante a transformação. O tempo conta na política. Precisa esperar um pouquinho. Agora ainda não é o momento, porque a Lava Jato está atuando muito fortemente aí.
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