por José Maria Correia, no Blog do Zé Beto
O ano era 1974, época marcada pela ditadura Médici, o Brasil havia perdido a Copa do Mundo e eu havia sido aprovado em primeiro lugar no concurso para Delegado de Polícia e estava me achando “o cara”.
Pronto para assumir o meu primeiro cargo, comprei um terno na melhor loja da cidade, o Magazin Avenida, bem ali no calçadão da Rua das Flores.
Caprichei no traje, coloquei o anel de formatura que a mãe havia comprado na Joalheria Kopp, mandei polir o Opala amarelo-ovo de talas largas no Posto Heller, e rumei todo empolgado para Campo Largo.
Chegando todo engravatado no antigo prédio da Delegacia, fui recebido por um senhor muito distinto e compenetrado a quem entreguei orgulhoso minha portaria original de designação assinada pelo Diretor da Policia Civil, o promotor Antonio Lopes de Noronha.
Ele a colocou em um arquivo, depois de apor burocraticamente um carimbo desnecessário, como de costume, e levou-me para conhecer a repartição.
Andamos pelas salas de paredes rachadas e esmaecidas, as janelas com alguns vidros quebrados, até chegarmos ao meu novo gabinete, passando antes pela ala da carceragem.
Sentei-me na cadeira do titular atrás da pequena mesa e iniciamos uma conversa, indaguei:
“O senhor é o escrivão?”
“Não”, respondeu o cavalheiro.
“Então é agente de segurança?”
“Também não”, disse ele.
Eu, já intrigado, perguntei:
“Mas qual o seu cargo na Delegacia?”
“Não tenho cargo”, respondeu constrangido, “Sou o preso de confiança e cuido do prédio.”
Pensei: “Caraca , mas que mico, eu todo emperiquitado me apresentando solenemente para um preso.”
Logo eu que estava me achando a versão tupiniquim do Eliot Ness, líder do lendário grupo dos Intocáveis, que havia prendido Al Capone.
Desconsolado e frustrado com o anti-clímax e a recepção humilhante, ordenei:
“Recolha-se! Lugar de preso é na cela.”
Ele, um senhor de mais de sessenta anos, desmanchou-se em justificativas.
“Doutor Delegado, eu nunca entrei no xadrez. Fui condenado por homicídio passional. Minha mulher me traía com a cidade inteira enquanto eu dava duro no açougue . Sou um homem honesto e arrependido de meu gesto impensado. Estou aqui há seis anos, faço churrascos para o Juiz e o Promotor e ainda cuido da Delegacia.”
Eu, como todo novato, estava apegado ao manual e não transigi. Disse:
“Comigo não haverá mais churrasco, sou vegetariano. E o senhor não sairá da cela, a não ser para o banho de sol. Isto até cumprir sua pena.”
Quando ele entrou na cela pela primeira vez os presos que ficavam na grade e não tinham a mesma regalia exultaram e gritaram para mim “É isso aí doutorzinho. Isso é que é moral. Caiu a casa do X-9. Nóis aqui é pobre e come polenta, maas não é corno nem puxa –saco de majorengo.”
Voltei para o gabinete e fui chamado por um soldado barrigudo, parecido com o Sargento Garcia do Zorro, para atender a minha primeira grande ocorrência. Um bêbado contumaz tinha mostrado a estrovenga para uma verdureira. Ela, muito religiosa, ficara indignada e fora prestar queixa.
Era uma senhora polonesa já entrada em anos. No popular, uma coroa polaca, dona Dombrowska.
Informado do caso, perguntei a ela com formalidade e respeito:
“Então minha senhora, o bêbado andou exibindo o órgão?”
Ela ouviu, pensou e respondeu com sotaque forte:
“Senhorrr, órgão ser como piano grande de igreja de Santo Estanislau. Tarrado mostrarr parra mim mais igual que corrneta de soprarr.”
Eu entendi, e respondi com certo embaraço:
“Pois é, minha senhora, o órgão masculino, pênis.”
Ela, irritada com a minha insistência, fez o gesto com as duas mãos espalmadas e me corrigiu:
“Nãodoutor! Serr pirroca mesmo!”
Bem, ali naquela pacata e bucólica Campo Largo da década de 70, permaneci por dois anos atendendo brigas de vizinhos, furto de criação e outras questões hoje denominadas como pequenas causas.
Com a convivência forçada, acabei admitindo e participando dos churrascos do açougueiro, o “seu” Joca Chifrudo, como era conhecido na cidade o corno arrependido.
E toda semana recebia a visita da velha verdureira que ia de carroça me vender ovos da granja com o pretexto de prestar queixa do Manezinho, o bêbado da praça que sempre a esperava na esquina para mostrar a pirroca .
“Bêbado tarrado ser desavergonhado, guarramputo, mas Delegado que fala esquisito ser gente boa”, dizia ela para o seu amigo Joca Chifrudo antes de partir pela rua de paralelepípedos lá para os lados de Bateias, onde ficava a imaginária e fantástica chácara da memória dos tempos perdidos.
Texto leve que toca até a alma.Boas recordações…